domingo, 25 de outubro de 2009

o outro lado do espelho


img.
Colleen Corradi Brannigan


"Os antigos construíram Valdrada à beira de um lago com casas todas varandadas umas por cima das outras e com ruas altas que fazem assomar à água os parapeitos em balaustrada. Assim o viajante ao chegar vê duas cidades: uma direita sobre o lago e uma reflectida de pernas para o ar . Nada existe nem acontece coisa numa cidade que a outra não repita, porque a cidade foi construída de modo que todos os seus pontos fossem reflectidos pelo seu espelho, e a cidade na água contém não só todas as estrias e os remates das fachadas que se elevam por cima do lago, mas também o interior das casas com os tectos e pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armários. Os habitantes sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento.
O espelho ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por cima do espelho, consegue resistir quando espelhado. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que existe ou acontece na cidade é simétrico: a cada rosto e a cada gesto respondem do espelho um rosto ou um gesto inverso ponto por ponto. As duas cidades vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos."


As Cidades Invisíveis, Italo Calvino, Teorema


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