domingo, 21 de dezembro de 2014

a literatura e a vida



img. Adam McCauley

Leitura selvagem

Protagonista dos livros policiais do escritor Luis Alfredo Garcia-Roza, o detective Espinosa tem o hábito de, ao fim do dia, no regresso a casa, parar nos alfarrabistas do seu bairro para comprar livros a preços convidativos — livros que depois, quando o tempo o permite, coloca em filas organizadas, alternando-os ora na vertical, ora na horizontal, assim dispensando as prateleiras na sua biblioteca. Mas mais contagiante é o seu processo de leitura, cuja heterodoxia vai revelando em detalhe a cada livro. 
Como método de leitura, Espinosa tem o “não ter método”, ou seja, lê conforme a sua disposição mental e física, critério ao qual acrescenta uma decisão de roleta na escolha do livro: “Espinosa tinha escolhido um livro para ler naquela noite, e a ele já acrescentara mais dois. Não que pretendesse ler três livros numa só noite mas por pura incerteza; não também por não ser capaz de descobrir por que o professor Vicente (protagonista da novela Um lugar perigoso) estava seguindo (...). Como não teria resposta para essa pergunta naquela noite, escolheu, de entre os três livros, A Trégua, de Primo Levi. Não conseguiu dormir antes das três da madrugada.”
Admitamos que esta relação rebelde com os livros e com a leitura, motivada pelo prazer e desconsiderando totalmente os fundamentalismos da narratologia, não é inédita. Na verdade, Espinosa aqui pouco se distinguiria, por exemplo, de Montaigne, que só raras vezes lia um livro de enfiada. A maioria das vezes, como ele próprio afirma, folheia “ora um livro ora um outro, um pedaço aqui, outro acolá, sem ordem nem plano de leitura”: “Ora divago, ora anoto e dito, enquanto ando de um lado para o outro, os devaneios que eis aqui” (Ensaios, Livro III). 
É sabido que os modos de leitura — as técnicas — muito se têm alterado ao longo da história da leitura; nem sempre se leu em silêncio, por exemplo. A este modo de ler (do detective Espinosa e de Montaigne) chama o já referido escritor e reputado psicanalista Luis Alfredo Garcia-Roza “uma leitura selvagem”, leitura que ele próprio considera ser a sua e que transmitiu ao protagonista das suas novelas: “Eu misturo a leitura de um Proust com a de uma Patricia Highsmith (..). Eu não leio literatura criticamente, eu tenho uma leitura pré-crítica, como o afirmava Lévi Strauss”, diz ele numa entrevista ao programa Um escritor na biblioteca.
Interessa aqui o reconhecimento de que há outras possibilidades de relação com os livros, algumas delas condicionadas pelos novos suportes electrónicos — que combinam acessibilidades múltiplas a vários textos em simultâneo mas, principalmente, outros modos de leitura, que não têm de ser penalizados por não serem conformes a processos condicionados pela semiótica, pela narratologia e, em último caso, pelo que ainda subjaz do lado mais rígido do estruturalismo e da morte do autor. 
A este propósito, a publicação recente de Façons de lire, manières d’être, de Marielle Macé, vem, entre outras propostas, repensar o acto de ler, afirmar que a literatura não está necessariamente separada da vida, que o modo de ler define um estilo, e que a leitura, ao invés de ser pensada como um acto de subjugação do texto ao leitor, é uma relação de atracção e réplica.
A autora começa por afirmar que não há “de um lado a literatura e do outro lado a vida”; que é, aliás, na vida vulgar que as obras de arte exercem a sua força. Não fala em recepção, decifração imediata, tão pouco fala na descodificação da obra. Ao usar uma terminologia como “força”, “energia”, “atracção”, “circulação de imagens” entre as obras e os sujeitos — curiosamente, uma terminologia muito nietzschiana —, Macé aborda a leitura como possibilidade de dar à vida forma, “sabor” e, até, “estilo”. 
Assim, podemos dizer “este livro agrada-me” sem corrermos o risco de sermos leitores menos considerados. No entanto, não há aqui — e bastará averiguar o conhecimento que a autora tem da literatura europeia e a bibliografia a que recorre — nenhuma simplificação do acto da leitura. A grande crítica de Marielle Macé recai sobre a forma como a semiótica e a narratologia criaram modelos de leitura como operações fechadas, recusando uma continuidade ou uma ligação entre a literatura e a vida. 

António Pinto Ribeiro

in http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/leitura-selvagem-1679588

Façons de lire, manières d’être, de Marielle Macé
 
img. daqui

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

the coming of love








The Coming of Light

Even this late it happens:
the coming of love, the coming of light.
You wake and the candles are lit as if by themselves,
stars gather, dreams pour into your pillows,
sending up warm bouquets of air.
Even this late the bones of the body shine
and tomorrow's dust flares into breath.

Mark Strand 
(11 de abril de 1934 - 29 de novembro de 2014)