domingo, 22 de março de 2009

primeiro poema


Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de idantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa de lambreta.

António Gedeão, Poesias Completas


tinha dez anos quando a poesia me chegou e trazia forma de rebeldia e liberdade. vinha de lambreta e na brasa, numa folha que a professora Cesaltina me colocou na mesa, dizendo-me que "aquele" era "o meu poema". porque tinha lá dentro o meu nome e porque eu era a miúda mais acelerada da turma. esperou que eu o lesse, olhasse para ela e perguntasse. de alizarina, idranteno, volúpia e companheiros não percebia nada, mas não me importei com isso. não perguntei logo nada. só depois de a ouvir ler o poema que era meu, meu inteiro e que me parecia o infinito.

1 comentário:

Anónimo disse...

e ainda hoje, ainda hoje.

um beijo
c