quinta-feira, 23 de agosto de 2012

o que sobre nós virá









um dizer ainda puro

imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.

Vasco Gato, Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.
img. Katia Chausheva

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

no silêncio da minha mãe, lembro todas as palavras






Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria, in "Explicação das Árvores e de Outros Animais"




segunda-feira, 13 de agosto de 2012

poeira cósmica






























Dois cometas atravessam o firmamento,
cruzam-se e juntam-se sem colidirem,
seguem caminho, lado a lado,
duplicando o brilho, duplicando o fulgor,
rasando o éter ao dobro da velocidade,
astros gémeos, parelhas de estrelas,
de cujo rasto no céu
se falará durante séculos na terra.

Frederico Lourenço
in Santo Asinha e outros poemas, Caminho, 2010

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

evitemos os gestos bruscos



Paciência

Faz-se o amor como se fosse um castelo
de cartas. Copas, paus, ouros, espadas. Um equilíbrio
difícil. Negros sobre vermelhos, damas e valetes
no meio de reis e ases. Ponho uma carta
sobre a carta que tu puseste; e tu acrescentas
a essa ainda outra. Até onde? Nesse jogo, não
convém respirar com muita força; evitemos
os gestos bruscos, os que deitam tudo abaixo,
de súbito; e espreitemos o olhar de cada um de nós,
quando nos preparamos para fazer subir o castelo.

Assim, ponho a minha emoção sobre o sentimento
que me confessas. Não precisas de mo dizer;
basta que eu saiba que os teus dedos brincam
entre corações e manilhas; que a tua voz treme
quando o edifício se parece com um labirinto;
e que ambos descobrimos uma saída, para um lado ou outro
da toalha. Na mesa, com efeito, podem já
nascer as flores, cantar as aves que brotam
de uma ilusão de primavera, ou morrerem frases
e borboletas que esvoaçam numa corrente de ar.

Por que abriste a janela? Agora que tudo caiu,
sem que um nem o outro tivéssemos feito alguma coisa
para isso, de quem é a culpa? Então,
aproveitemos este silêncio breve, enquanto a tarde
não chega, e recomecemos o jogo.



Nuno Júdice, A Fonte da Vida

img. daqui