segunda-feira, 19 de maio de 2014

da literatura









E TUDO O RESTO É LITERATURA


A palavra mais forte, mais verdadeira, que toca no seu próprio fim, na sua matéria mais densa e profunda, pode não ser a palavra dita “literária” (muito embora, paradoxalmente, consiga fazer-nos acreditar na existência da literatura), não ter a assinatura de um escritor, nem realizar o esforço de se apresentar sob a forma de poema, de romance, de texto em prosa, de livro. Aliás, os livros, cujo regime de apresentação na cena da literatura é, em geral, o da idade do narcisismo, da regressão a uma infantilidade que leva as pessoas a quererem “exprimir-se” e a introduzir o odioso “eu” por todas as frestas e em todos os salões de festa a que acedem (a estupidez, diz algures Deleuze, nunca é muda nem cega), raramente têm um lugar diferencial, uma função de negatividade, no meio do ruído. Palavras fortes, capazes de nos fazer perceber que fomos expropriados sem remorso e estamos imersos na pobreza das palavras que escondem a nossa jornada, são as que podemos ouvir em Vidros Partidos, o filme com que Víctor Erice respondeu a uma encomenda de “Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura”. Nesse filme/documentário, ouvimos o testemunho de homens e mulheres que trabalharam numa fábrica de tecidos do Rio Vizela, na região do Vale do Ave, fundada em 1845 e encerrada em 2002. Eles contam a sua experiência na fábrica e comentam uma foto antiga, que parece ter sido feita numa ocasião festiva, onde aparecem, reunidos, ao longo de mesas de cantina, os operários de então. A foto é inquietante, pelo modo como todos aqueles homens e mulheres, sujeitos de uma história que chegou há muito ao seu fim e que nós já só conhecemos da historiografia, olham para nós e nos interpelam. Víctor Erice pôs alguns ex-trabalhadores da fábrica encerrada a recitar, de cor, diante da câmara, o texto com que prestaram o seu testemunho. Isto é: a versão inicial do texto foi arranjada, montada, cortada (mas não reescrita com outras palavras), e depois dita pelos seus autores, que passaram assim a ser também actores da sua própria história. Uma mulher, velha e debilitada, aproveita a ocasião para ler um poema que leva consigo, de uma prima que “escrevia muito bem, desde muito nova”. E esse poema, que não interrompe nada e apenas prolonga o fluxo das palavras daquela mulher como um fluxo poético (como aliás, o de todos os outros ex-trabalhadores da fábrica que testemunham no filme de Erice), soa-nos como algo capaz de dar a ver a vacuidade da literatura e os seus abjectos artifícios – aquela que chega até nós mediada pelos protocolos canónicos da instituição literária. Tal poema é um antídoto contra a saturação intrínseca à indústria literária, essa coisa ignóbil que dissimula a nossa própria morte. O que as palavras daquela mulher nos fazem perceber (assim como a de todos os outros trabalhadores que comparecem no filme, sem poemas para ler, mas com palavras próprias para dizer), muito especialmente quando recita o poema da sua prima, é que nós chegámos demasiado tarde à literatura, quando ela já chegou ao seu fim. Nós, leitores, vós, escritores, jamais conseguiremos atingir, perante a palavra literária, aquele estado de encantamento, que não se confunde com nenhuma espécie de ingenuidade. Para aquela trabalhadora, a tragédia da história redime-se através de um poema que nunca tinha encontrado o seu público; para nós, tudo o resto é literatura. Aquele poema resplandece sem assinatura; nós, só raramente conhecemos um escritor que não seja ao mesmo tempo jornalista, escritor-jornalista com uma missão de reportagem de si próprio e da sua obra.

- António Guerreiro
in Ípsilon (16.05.2014)


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